Carta #26


Já perdi a conta de quantos dias eu venho até aqui lhe assistir
Vê-la dançar, pular e sorrir.
Meu caderno de anotações está comigo,
Enquanto meu coração está aí em cima, com ela
Cada qual separados por uma plateia.
A escrita é mesmo, o último dos meus recursos
Escassos, ínfimos e inúteis
Quem disse que papel e caneta um dia podiam
Encarar um mundo cheio de atitudes fúteis?


Ela perdera a conta do tempo que já dançava
Sabia que eram anos
E que anos nunca significaram nada.
E tudo que queria era dançar em meio a chuva
Cercada de tudo, de todos
E mesmo assim cercada de nada.

E enquanto ela ouvia os gracejos da plateia
Que aplaudia e uivava
Tinha aceitado na sua vida uma ideia
De nunca mais aceitar nada de graça de alguém
Presentes são interesses,
E mesmo o presente é do interesse de quem vive, desde que pense no futuro.

Eu só consigo estacionar meu carro e terminar de escrever
Enquanto a chuva forte bate no teto como quem quer entrar
Porta adentro, com medo do frio do inverno que se aproxima
Procurando um interior quente e preenchido.
E é quase como se eu conseguisse vê-la lá fora
Dançando, os braços estendidos para os lados, o rosto para cima
Os olhos apertados pra não deixar as gotas entrarem
Ou para não deixar as lágrimas saírem
Mas não eram lágrimas de tristeza, não
Eram de alívio
Estava livre, finalmente.

E como por destino ou somente livre arbítrio
Ela batia na porta do meu carro
Como quem quer entrar porta adentro
Não com medo, mas com vontade de encontrar um interior frio e vazio
Entusiasmada para preenchê-lo com uma razão para continuar existindo
Dançando para uma só plateia
Eu e duas pequenas garotas, nossas filhas.