Autor Desconhecido
Traduzido do italiano por: Felipe Alexandre Bazzanella
Termos em alemão mantidos para a qualidade da obra
Itália, 1941
“Estranho, isso é muito estranho”. Murmurou, com um tom de voz talvez calmo demais para uma situação tão inusitada. Confesso que também não consegui prestar atenção à sua voz enquanto o sangue escorria devagar pelo dedo indicador da sua mão direita.
A cartomante também tinha um olhar atônito, que ficou um tempo longo demais olhando para a mesa, mas com um olhar perfurante e disperso que parecia que estava na verdade olhando para as estrelas no outro lado do planeta.
“Er, hm, eu acho que posso te ajudar…”. Comecei a falar enquanto procurava um pedaço de papel que tinha guardado no bolso, mas ela me interrompeu. Talvez minha voz a tenha puxado de volta à realidade, pois ela finalmente piscou, uma, duas, três vezes espaçadas, me olhou como se tivesse esquecido que eu estava ali, e escondeu a mão machucada. “Fique tranquilo, já volto”. Levantou-se e saiu de vista por entre um espaço onde havia antigamente uma porta de madeira, mas agora somente uma cortina de pequenos rolinhos de madeira que ficavam pendurados no batente superior.
Entrei naquela caixa mental em que eu não pensava em nada. Meus sentidos se alteraram: a visão se tornava secundária, mas os demais se aguçaram em contrapartida. Uma gaveta se abriu, e coisas plásticas se chocavam entre si. Carros faziam barulhos na rua, ora pelos motores, ora pelas rodas batendo num calçamento não uniforme. Um cheiro me chamou a atenção, era algo almíscar e minha memória olfativa me disse que se tratava de algum incenso. Ouvi o barulho das bolinhas de madeira balançando e minha visão voltou a funcionar. A cartomante estava voltando de onde estava, e pude notar automaticamente o seu dedo agora com um curativo no lugar do corte. Não havia mais sinal de sangue.
“Podemos continuar?” perguntou, eu assenti. Voltamos a nossa atenção conjunta para as três cartas que estavam postas à mesa.
“A primeira carta é o “Julgamento”. Por si só ela indica um fim: o objetivo final da vida; o círculo fechado; a audiência obrigatória de todas as almas para com seu Criador.”
“Uh!” brinquei. “Parece sério, mas estou tranquilo, não tenho dívidas” , completei. Ela assentiu, e prosseguiu para a próxima carta.
“A segunda carta é “a Lua”. Em si, ela demonstra o destino fatal dos homens: o de ser satélite eterno de quem se ama. O frio de um corpo sideral sem atmosfera, sem proteção”. Resolvi não falar nada. Não acreditava que cartas poderiam exemplificar o que eu sentia por alguém, ou teriam tantos significados diversos.
A última carta ainda não havia sido virada, pois quando foi pescada do monte pela cartomante, escorregou por entre seus dedos e gerou o pequeno corte que nos deixou surpresos. Ela encostou na carta com a mão com o curativo, e usou o dedão para levantá-la. Antes de virá-la para mim, ela abaixou o olhar, leu a carta, e voltou a olhar para mim.
“Isso é mesmo muito estranho. A terceira e última carta é essa”
A carta foi colocada à mesa.
“A Imperatriz”
A carta mostrava a imagem cartunesca de uma figura feminina da alta sociedade. Seus cabelos longos e castanhos estavam adornados com pequenos triângulos amarelos. Seu olhar fitava a todos que a olhavam, como se fosse onipresente. Ela sorria, um sorriso eterno que só poderia ser apagado ao virá-la para baixo. A carta estava perfeita, exceto por uma pequena mancha vermelha de sangue quase seca de anteriormente. A imperatriz, parecia, havia lutado e se manchado.
Alguns segundos se passaram, como se a cartomante também estivesse notando só agora todos esses detalhes da imperatriz.
“Senhora, pode me explicar esta última carta, e também toda a estranheza que você mencionou já duas vezes?” perguntei, quebrando o silêncio, como se a última parte do atendimento fosse responsabilidade minha de saber.
“Sim” disse ela, e após uma pausa, começou a me explicar.
França, 1944
Relógios eram objetos do passado que não faziam sentido, ou não tinham sentido algum onde eu estava. O tempo podia ser contado pelo cansaço físico extremo, a hora de dormir. E a batida ritmada dos gatilhos das armas ao meu redor, a hora de acordar.
“Atenção!” gritava o sargento do meu esquadrão, alto demais, perto demais. Enquanto se aproximava, eu me levantava rapidamente, abraçado ao fuzil, como já havia feito tantas vezes.
“O bunker que foi bombardeado na última noite, precisa ser revistado.” disse, olhando para mim, os olhos fundos, o cabelo visivelmente sujo para fora da boina, o cigarro aceso pela metade no canto direito da boca, os dentes amarelados e quebrados aparecendo enquanto falava.
“Vá e recupere o que encontrar de valor. Comida, armas, munição, o que encontrar. Volte até o cair da noite” virou-se e foi em direção a outro grupo de soldados, botas pesadas no chão irregular e molhado da chuva que caíra nos últimos três dias.
Amarrei os coturnos, e com outros dois soldados, caminhamos em direção ao bunker. Por entre a mata fechada e por trincheiras, sabíamos que estávamos na direção correta pela densa fumaça que ainda subia por entre as árvores.
Lembrei de casa.
Noites em que eu dormia com os pés quentes e o estômago cheio. Às vezes acordava no meio da noite, após algum sonho intenso, ou com sede pela dieta carnívora do jantar passado. O escuro era total, mas eu não tinha medo, então não acendia nenhuma luz. Tampouco precisava, pois sabia com total confiança como andar no escuro. Raras as vezes em que encostara em algum móvel, e sempre eram devidas a alguma ingestão exagerada de álcool anteriormente.
Mas o tempo presente era diferente. Não existia mapa físico ou mental, nem familiaridade, muito menos a segurança do lar. O inimigo poderia estar atrás daquela árvore ali, à minha direita. O meu olhar às vezes parava por segundos em um pedaço de vegetação rasteira que minha mente tinha avistado padrões de olhos pintados. Qualquer galho que caía nos arredores levantava os pelos do meu braço.
O cheiro de fumaça estava a cada passo mais pujante. Estávamos próximos. Em meio aos escombros, avistei pedaços de uniformes alemães. Pisei em falso, e quando olhei para baixo, o pedaço de um corpo humano estava agora com as marcas do meu coturno. Qual parte do corpo, não era possível identificar. Uma cena que já não era inédita para nós.
Meus colegas e eu nos separamos, um para a esquerda, outro para a direita, e eu fui em direção ao centro da cratera, onde algumas paredes do bunker ainda estavam de pé, como se desafiando o poder destrutivo dos céus. Encostado na parede, um corpo alemão, inteiro, sentado, à sorte, diferente dos seus colegas espalhados pela área. Até o seu uniforme, tirando a sujeira, o pó e manchas de sangue, estava inteiro. Ao seu lado, encontrei munição, a qual recolhi e coloquei dentro da mochila que carregava nas costas.
Ouvi um barulho que não vinha de nenhum dos meus colegas. Instintivamente me abaixei e procurei de onde vinha. Minha mente entrou naquela caixa mental em que a visão se tornava secundária. A audição estava com todas as minhas atenções em busca da repetição daquele barulho.
“Bitte töte mich nicht.”
O barulho que eu tinha ouvido não estava longe, estava ao meu lado. Meu olhar, que ainda estava à frente, ainda não tinha capacidade de discernir nada em seu ponto central, apenas pequenos vultos em sua parte periférica. Outro par de olhos me encaravam, vindos do corpo alemão ao meu lado, ainda encostado na parede. Em sua mão direita havia algo que só poderia ser uma arma.
A adrenalina correu forte pelo meu corpo, e quando me virei, vi que em sua mão estava uma toalha escura. Segurava com tanta força que seus dedos estavam brancos, e estavam estancando um sangramento no seu flanco direito.
“Inimigo!” gritei, enquanto me levantava e apontava meu fuzil para sua cabeça
“Bitte töte mich nicht!” ele gritou, mais alto do que eu.
Continuei apontando a arma para ele enquanto meus companheiros soldados o revistaram, não encontrando nenhum perigo aparente. Entreguei meu equipamento para um deles e me propus a carregar o soldado inimigo de volta até nossa base temporária. Em seu uniforme, a etiqueta com seu nome ainda estava legível.
Alemanha, 1945
“Herman, como se sente voltando para sua casa lutando pelo lado contrário?” perguntei. O inimigo que eu havia carregado até a base, o desertor que reverteu uma forte hemorragia causada pelos destroços do bunker bombardeado no ano anterior, o primeiro soldado alemão das tropas aliadas, o amigo que tinha travado tantas batalhas ao meu lado, simplesmente riu.
Todo nosso batalhão estava sentado em volta de algumas fogueiras adaptadas. Lutávamos durante o dia contra soldados, e a noite lutávamos contra o frio. Vários estavam com os coturnos fora dos pés, tratando suas feridas devido aos calos ou ao excesso de umidade. O tempo estava limpando, pela primeira vez em dias, e a lua subia alto e brilhante no céu.
Herman me respondeu ainda olhando para baixo, polindo sua arma inseparável. Uma arma alemã, a StG 44, que outrora tentava nos ferir, hoje nos defendia. Com detalhes em madeira onde Herman a segurava para maior precisão no tiro, e com sulcos no metal de sua fabricação, ela era realmente bonita. Bonita e assassina. Talhado no metal, pelo próprio Herman usando ferramentas que encontramos na ferraria de uma cidade que liberamos, estava o nome de sua arma companheira:
“Kaiserin”
“É bom estar de volta meu amigo. Mas não se engane: as terras são as mesmas, o povo é o mesmo, mas essa não é mais a minha casa. As circunstâncias mudaram”
Assenti com a cabeça, mas mantive meu silêncio. O relógio do corpo já me dizia que era hora de dormir.
“Atenção!” Gritava o comandante, e meu corpo, automatizado, já estava de pé. Mas as circunstâncias realmente haviam mudado, pois não era uma missão naquela manhã, era sobrevivência.
Três soldados à minha esquerda caíram, os corpos sem vida, os músculos desconectados de um cérebro perfurado por um projétil. Sangue espirrou para todos os lados. Me abaixei instintivamente, olhei ao redor e as batidas ritmadas dos gatilhos voltaram a rugir. Procurei Herman ao meu redor, entre vivos e mortos, mas não o encontrei.
O tempo pode também ser calculado sem o auxílio dos relógios, apenas contando quantos alvos caíam dos dois lados, se amontoando em uma canção de morte, sangue e palavras não ditas.
Estávamos sendo massacrados, recuando sem parar, passos e passos em direção ao inevitável julgamento final.
Por sorte ou destino, eu fui o último homem vivo. Eu vi todos os meus parceiros perecerem. Alguns caíram olhando para mim, olhos vidrados, tornando-se um único ser com a vegetação rasteira, vermelha. Outros caíram sentados, encostados em árvores, como se estivessem apenas descansando para levantarem no próximo dia e voltarem para suas casas onde poderiam comer carne e tomar alguma bebida alcoólica antes de dormirem profundamente.
O ciclo estava se fechando para mim. Conseguia ver soldados correndo em minha direção. Eles sabiam que eu era o último e estava indefeso, vulnerável. Enquanto andava para trás, tropecei em um letreiro caído de um estabelecimento comercial, destruído. Li seu antigo nome e lembrei da cartomante, rindo, percebendo que a minha vida poderia muito bem estar sendo escrita pelas mãos de alguém naquele exato momento, com tudo planejado, uma tênue linha produzida pelo lápis, me dando e me tirando a vida a seu bel prazer.
“Vanilleeis”
Ciente da minha realidade, larguei a arma no chão. A mochila escorregou como se também quisesse descansar, e fez um barulho estrondoso ao cair.
“Warte! Überlass ihn mir!” ouvi. Era um voz que eu ouvia há menos de um ano, mas a reconheci. Apertei os dentes, entendendo, mas ainda incrédulo com os fatos.
Herman parou à minha frente, eu sabia, mas não levantei o olhar. Reconheci a ponta da sua Kaiserin, apontando para baixo, e também seu coturno, e pensei em quantos pedaços de meus amigos e colegas ele tinha acabado de pisar para chegar até mim. Outros foram chegando e nos rodearam. Não contei quantos eram, não era mais uma informação importante.
Kaiserin se moveu para fora do meu campo de visão. Algo gelado, metálico, encostou em minha têmpora.
“Das tut mir leid”