Vishuddha


Tudo em que conseguia pensar, era no frio
Perdera a conta das horas que estava imóvel, sentado no chão encharcado e encostado numa viga.
A mão já dormente trabalhava automaticamente lustrando o fuzil
Sentia que estava mais acordado do que durante o dia em que combatera soldados alemães
E quase não se assustou quando um ave alçou voo ali por perto
Só apontou a arma para a entrada do abrigo e esperou.

Seu compatriota, que dormia ao lado e acordou com o barulho, cochichou, enquanto um relâmpago lá fora iluminava tudo.
"Mais uma noite em claro, eh? O sono vai te matar, Mike"
Descansando o braço, Mike olhou para o lado para ver que o amigo já voltara a dormir.

Lembrou que não falava nenhuma palavra há pelo menos um mês
Que sua botina direita estava cheia de água
E o coração, se ainda existisse -- podia senti-lo batendo forte no pescoço -- estava cheio de mágoa.


Eram cabelos negros
Lábios um pouco finos e largos que abriam em um sorriso resplandecente
Como uma flor que desabrocha na primavera
Trazendo um calor que lhe faltava naquele exato momento
Essa era Marie
Lembrava-se como fosse ontem. Ela, de férias em outra cidade, ele, apaixonado.
Tinha decidido com todas as forças que revelaria suas intenções
Mas antes que ela voltasse, ele foi convocado para defender o seu país.
Esse era o motivo da promessa de não falar nenhuma palavra até reencontrá-la -- ou morrer.

Lembrar dessa história fazia suas costas tremerem, a mesma coisa que sentia quando algo ruim estava para acontecer,
E foi muito rápido.
Centenas de passos apressados começaram a circundar o abrigo,
Logo vieram os tiros, explosões.
Lá fora, apenas a chuva dava trégua, pra mostrar que um novo último dia nascia.
Todos os aliados tinham morrido, menos Mike, que nesse momento corria,
As pernas queimavam quase tanto quanto o tiro que acabava de receber no ombro
Cambaleou, deixou cair a arma e uma lágrima no chão, mas continuou sua fuga
Olhar para trás não era uma opção
As árvores o atrapalhavam, como se desejassem que ele fosse capturado
O peito arfava e cada respiração ficava mais dolorosa e difícil
O ombro gritando em silêncio uma dor nunca antes sentida
Quando a floresta acabou, um abismo se colocava a sua frente
Ele parou de correr, subitamente
Seus joelhos foram os primeiros a desistir e bateram forte nas pedras
Era o fim, eles estavam mais e mais perto agora, gritando, chegando.
Aspirou a maior quantidade de ar que conseguia
E olhando pra cima, imaginou

Sua casa, azul, com cercadinho branco
Alguns cachorros brincando no quintal
A rádio tocando Hank Williams
Ele acordava com a porta do quarto se abrindo e ela entrando
Os cabelos presos, o sorriso no rosto e as crianças correndo logo atrás
Tudo isso podia ter acontecido se tivesse falado a ela que a amava.
Pai, pai!

Eles finalmente tinham alcançado Mike
Na imaginação, suas filhas
Na realidade, os alemães
O dia tinha um tom de azul mesmo.
Ele lembrou que tinha uma promessa a cumprir e gritou com todas as forças:
"MARIE!!"

E foi morto.