A Alma que almejava o gotejar do Sangue


Não sabia há quanto tempo segurava-o ali, inerte.
Sentia o sangue da cabeça dele correndo pelo braço que estava embaixo, e pingava no chão.
O barulho daquele sangue pingando é diferente de tudo que já ouvira.
Não era remorso ou culpa que sentia, era mais um alívio,
Vívido e eterno
Aquele ser a partir de agora não receberia mais abraços ternos
E terno seria a sua última vestimenta nesse mundo anormal e animal





Levantou a cabeça lentamente e olhou ao redor
O quarto era uma bagunça.
Tornou a olhar para o cadáver.
"Posso assumir que tua vida era uma bagunça também" -- falou devagar e num tom de voz quase inaudível, pois algo em sua mente tinha medo que ele acordasse de um sono profundo.
"Sabe, o problema do mundo
Foi não ter te ouvido direito.
Quem sabe você falou baixo demais, assim como eu, agora
Mas eu creio piamente que foi o excesso de barulho lá fora
Que te deixou de fora de um processo evolutivo seletivo sem crivo algum.
Você era um cavalo negro num filme colorido que fazia todo mundo se perguntar se você era velho demais para a época ou só um erro de gravação."

O sangue começou a pingar mais e mais devagar,
Os últimos resquícios de vida ficando cada vez mais imperceptíveis

Deixou a cabeça dele encostar no chão e removeu o braço debaixo,
Como se estivesse colocando uma criança pra dormir em um leito da qual jamais levantará.
Assim conseguiu ter vista do corpo todo,
E viu que não havia sinal algum de que um dia aquele pedaço de carne tinha abrigado vida.
Era como se a vida, ao sair dali, houvesse levado tudo que torna um ser humano único junto com ela.

Levantou-se e ficou em pé,
Ergueu a própria mão até a boca lentamente e sentiu o gosto do sangue, metálico
Familiar.
Olhou para a cabeça daquele ser, deitado, notando o buraco bem onde o projétil entrou, onde destruiu sonhos, sentimentos e memórias de 27 anos de uma vida em apenas uma fração de segundo.
Depois dirigiu a mão até a própria cabeça,
E percebeu que ali também havia um buraco, igual.
E desapareceu.